segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Fidelis

Uma das relações mais duradouras da minha vida foi com o João. Encontrava-me com ele numa regularidade quase cósmica e sempre no mesmo sítio. Fui-lhe fiel durante anos a fio, negando-me entregar nas mãos de qualquer outra pessoa. Era ele que sabia como eu gostava, era másculo, decidido, pragmático, eficiente e eu sentia-me seguro com ele... o que convenhamos é algo precioso! Ele pela sua parte sentia-se igualmente confiante comigo, sabia o que eu gostava e sabia como me agradar. Era contudo uma relação desequilibrada... eu era apenas uma criança quando começamos, eu sabia que muitos outros amigos o procuravam e assim ele sabia mais sobre mim do que eu algum dia sobre ele. Sempre resisti às tentações de experimentar uma coisa nova, mesmo quando os amigos assim insistiam, a minha fidelidade estava ali alicerçada.

No entanto, não consigo ainda explicar o que aconteceu, se foi a monotonia ou algo se alterou bem dentro de mim mas, depois de muitos anos um dia decidi que era tempo de romper com o João. Num típico processo de traição e substituição, nunca mais o procurei e fui encontrar o Miguel... e com ele fiquei durante tantos outros anos. Eu já tinha ouvido falar do
Miguel, e efectivamente ele era tudo aquilo que o João não era. Feminino, delicado, preocupado, estilístico e criativo. Era sobretudo esta última parte que eu procurava. Procurava, ou antes, precisava. E aqui começo a compreender a necessidade de mudança que me assolava. A passagem dos anos modificou-me, ou eventualmente deixou crescer em mim outras vidas que lá estavam guardadas. A necessidade de rasgo, de extrapolar o que se guardava em mim levou-me a optar por me revestir de uma aparência diferente... construindo uma nova personalidade. É também no experimentar da primeira traição, que abrirmos a porta à relativização das relações... a partir dai sabemos o que é romper e mudar, que o mundo não acaba e seguimos a andar. Interiorizamos sobretudo o que é desapontar e magoar... a verdadeira consequência é que passamos a saber o que nos pode também acontecer.

Ainda assim, foi mais difícil deixar o Miguel... a mesma dinâmica de mudança impeliu-me para novos caminhos que introduziram uma distancia enorme entre nós e aos poucos fui forçado a ceder na relação. Durante largos meses ainda me mantive crente, celibatário e fiel. Empenhei-me e esforcei-me por conciliar na minha agora complicada agenda, pequenos regulares encontros efémeros a quando de uma viagem a casa. Contudo era apenas uma questão de tempo até que a distancia e a ausência levasse a melhor... Um dia, já em desespero de causa, acabei por procurar um outro no meio de uma cidade qualquer... do qual nem quis saber o nome. A experiência naturalmente correu mal, naquilo que se veio a revelar o inicio de uma sucessão de tantas outras más experiências... A total ausência de fidelidade raramente nos é compensatória. Ainda voltei às mãos do Miguel mais tarde por um punhado de vezes, mas a ruptura é agora efectiva. Simplesmente não vale a pena pensar que temos uma relação. Eu limitar-me-hei a visita-lo sempre que puder, num quase reencontro de velhos amantes que não fazem perguntas e limitam-se a retomar o calor da cama da noite anterior. Ele recebe-me sempre de sorriso largo e afectivo, e eu por momentos fecho os olhos e volto a descansar em mãos que sabem como o meu cabelo vai sair dali cortado naquele dia... mesmo que eu próprio o desconheça. É assim a confiança.

Ainda vi o João de passagem algumas vezes, mas evitava-o pois sentia que ele nunca iria compreender e perdoar aquela decisão, que ele certamente chamava de traição. Já o Miguel acolhe-me sempre perdulário, tentando corrigir e aprumar o corte que um qualquer carniceiro me ofereceu na ultima vez, nunca dizendo adeus. Os contornos da fidelidade são sempre obscuros. Compreender se quando decidimos mudar é em si uma infidelidade ou se a falta desta é apenas uma medida relativa do numero de vezes que mudamos... e quem decide que mudamos vezes de mais?... A fidelidade assume também diferentes formas, o que para uns é uma traição por simplesmente ter espreitado uma loja diferente, para outros é relativizado no essencial... a entrega pura que só conseguimos em algumas mãos. Parece-me sobretudo que a fidelidade depende essencialmente de começarmos por ser fiéis a nós.

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