quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Cebola

O cheiro a cebola nas mãos que carregamos no dia seguinte, parece-se por vezes como o perfume de outra mulher carregado na nossa camisa...

Todos o cheiram e sentem a traição de não terem comido aquele brilhante arroz de marisco!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Sapatos

...negros, gastos, vincados. Cada marca neles foi um passo mal dado, um atropelo de um tacão, um enlace demasiado rápido que uma ponta solta arranhou. São uns ineptos com o seu tacão inverosímil de formato em cunha ao melhor estilo Noir da década de 50... não me perdoam o menor erro de hesitação no apoio. A sola vidrada não se adequa a qualquer pavimento e o couro amolecido há muito que já não abraça o pé com a mesma firmeza.

Praticamente dois anos sem sentirem o calor dentro deles. Frios esmorecidos quedavam-se pela prateleira onde apenas se ouvia o eco de tangos passados chorado dentro deles.
E no entanto... hoje ali estavam eles, velhos veteranos prontos a enxovalhar qualquer gaiato, ostentavam orgulhosos as suas marcas dissipando as dúvidas de que ali... ali dançava-se o Tango!

Voltar à milonga foi dificil... mas a isto volto depois. O que fica desta noite é que... hoje, naquele salão perdido na noite africana, os meus velhos sapatos... por momentos voltaram a ser Reis!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Crentes

Felizes os convidados para a ceia do senhor... e assim felizes efectivamente são.

Não faço disto conhecimento empírico ou teórico... é apenas pura percepção individual. A verdade é que fico sempre tomado de espanto pela bonomia e felicidade intrínseca que encontro em alguns jovens crentes. Respeito muito a fé, seja ela no que for... acredito que quem não tiver fé, não tem alma... mas a felicidade que encontro naqueles jovens que acreditam piamente na sua fé católica sugere-me que esta lhes proporciona uma ligação directa e simples à vida, isolando-os de todas as sombras que tolhem a humanidade. A forma como encontram satisfação nas pequenas coisas, nas mais imberbes e inacreditavelmente básicas coisas da vida... nunca deixa de me surpreender.

Claro está que tudo isto apenas se fixa no básico. Quando o mundo se complica... é toda uma outra historia.

Eu vivo confortavelmente no mundo complicado. Não lhes invejo aquela fé. Mas não deixa de me fascinar... e considero sinceramente que tenho sempre alguma coisa a aprender ali. Naquele sentir muito verdadeiro e puro.

Felizes assim o são, e feliz assim o sou.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Platinum

Seis meses a viver no ar oferecem-me hoje forçado ingresso no clube mais elitista dos ermitas dos céus. Eles deambulam entre os comuns mortais quase imperceptíveis. São os primeiros a sair, e por norma os últimos a entrar. São a razão de existir daquela porta, aquele corredor privado de acesso, aquele balcão ao lado que aparenta estar sempre inutilmente vazio com uma cara bonita à espera de alguém que há de chegar mas que quase nunca vemos. Quando surgem trazem na face a expressão do confortável aborrecimento de quem possui a propriedade daqueles espaços de transito sempre estranhos e desconhecidos a todos os comuns, os quais eles entediadamente toleram a existência. Passam rápidos como vultos familiares dos cantos da casa, denunciados apenas pelos lestos movimentos que exibem em cada passo do extenuante percurso aeroportuário, e pelos pequenos tags que trazem apensos às mochilas e pastas: silver, gold... paltinum. São estes os free-pass para a entrada no seu habitat natural... o sobre-mundo dos Business Lounges.

São cada vez mais, ocultados por insuspeitas escadas ou discretas portas opacas, os Lounges são o novo trend da sofisticação. Ocupam na religião destes ermitas o lugar de templos de refugio e meditação. São espaços replectos de futuristico design, lugares virtualmente out-of-this-world, recriações de uma realidade paralela, feita para isolar do mundo real. Espalhados pelo globo, qual seita de pequenas igrejas e grandes catedrais, garantem aos ermitas um local seguro onde sabem que vão encontrar resposta a todas as necessidades dos itinerantes. Oferecem pequenos apontamentos gastronómicos, a diversidade esperada de bebidas até ao sublime champagne, o fundamental acesso à Rede, e se for uma grande catedral... duches, chaise longues, meeting rooms, massagens... tudo providenciado free of charge por séquito de serventes disponíveis para realizar até a mais mundana tarefa do simples check-in. Isolados e espalhados pelo lounge, os ermitas meditam, comunicam, trabalham, descansam... É uma vida feita de jet-lag, heavy-duty luggage, ultra-portable computing, wrinkle-free clothing, sub-100ml liquids, free-shop shopping, extended battery life, video-chating, worlwide coverage... e omnipresente solidão.

Sou um descrente fiel desta Igreja sem deus, mas necessariamente um seu seguidor. O contador acaba de ultrapassar 120,000 milhas vividas na maior das turbulências... Em retrospectiva, estar perdido no ar foi seguramente preferivel a estar na terra a definhar.

Religião que se prese, propõe sempre a miragem da salvação. Por sorte esta é uma religião retorcida... que paga na terra os pecados no céu! Ao receber a imposição da Ordem de Platina pela minha sobrevivência... reflito que é chegado finalmente o tempo de começar a preparar um retiro de descanso desta guerra. E claro... sempre Flying Blue!



* hmmm... parece-me que a escolha está feita!

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

30

- Viva! Como estás? (com aquela familiaridade de quem me viu ontem...)

- Bem... cada vez melhor!

- Sabes, fez há 15 dias... 30 anos que nos conhecemos todos...

E assim, pelo fresco da manhã, com duas frases apenas fazem-me sentir velho, cheio, rico, feliz...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Marrons

*Era tempo de ir buscar o meu Outono...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

hop-off

Queixo-me mas ainda não consigo estar quieto... Bicicletas, queijos, vinho, restaurantes, civilização, frio, quente... descoberta e desconhecido. Alguma paz.

Domingo estou de volta.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Dinars

A campainha tocou e contaram-me a mais estranha história... daquelas que usualmente só acontecem a mim. A aparente solução eram 50 dinars, que eu providenciei com o sorriso do amante que sabe ser traído. E nunca mais voltou. Espero apenas que os tenha gasto em todos os vícios possíveis...

Diz o proverbial conhecimento que casa roubada trancas à porta. Desconheço se o sentido original era de uma simples constatação, mas é inegável a sentença implícita... da ingenuidade de não ter colocado as trancas antes de nos terem entrado na casa; do mundo não ser feito de portas abertas, de jardins sem muros e janelas sem grades; de amargurar-mos o assalto com o definhar atrás de trancas.

O idiótico roubo de algo insignificante é o suficiente para num segundo deitar por terra todo o capital de confiança enraizado bem dentro de nós. Conseguir desfazer o novelo deste medo é algo que leva muito tempo.

Mas um mundo de trancas... só serve a estroncadores de fechaduras. Uma vez mais não é saber viver no medo de não sermos assaltados. É tomar como adquirido que isso é uma inevitabilidade, mas que não se sabe viver preso por trancas.




segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Fidelis

Uma das relações mais duradouras da minha vida foi com o João. Encontrava-me com ele numa regularidade quase cósmica e sempre no mesmo sítio. Fui-lhe fiel durante anos a fio, negando-me entregar nas mãos de qualquer outra pessoa. Era ele que sabia como eu gostava, era másculo, decidido, pragmático, eficiente e eu sentia-me seguro com ele... o que convenhamos é algo precioso! Ele pela sua parte sentia-se igualmente confiante comigo, sabia o que eu gostava e sabia como me agradar. Era contudo uma relação desequilibrada... eu era apenas uma criança quando começamos, eu sabia que muitos outros amigos o procuravam e assim ele sabia mais sobre mim do que eu algum dia sobre ele. Sempre resisti às tentações de experimentar uma coisa nova, mesmo quando os amigos assim insistiam, a minha fidelidade estava ali alicerçada.

No entanto, não consigo ainda explicar o que aconteceu, se foi a monotonia ou algo se alterou bem dentro de mim mas, depois de muitos anos um dia decidi que era tempo de romper com o João. Num típico processo de traição e substituição, nunca mais o procurei e fui encontrar o Miguel... e com ele fiquei durante tantos outros anos. Eu já tinha ouvido falar do
Miguel, e efectivamente ele era tudo aquilo que o João não era. Feminino, delicado, preocupado, estilístico e criativo. Era sobretudo esta última parte que eu procurava. Procurava, ou antes, precisava. E aqui começo a compreender a necessidade de mudança que me assolava. A passagem dos anos modificou-me, ou eventualmente deixou crescer em mim outras vidas que lá estavam guardadas. A necessidade de rasgo, de extrapolar o que se guardava em mim levou-me a optar por me revestir de uma aparência diferente... construindo uma nova personalidade. É também no experimentar da primeira traição, que abrirmos a porta à relativização das relações... a partir dai sabemos o que é romper e mudar, que o mundo não acaba e seguimos a andar. Interiorizamos sobretudo o que é desapontar e magoar... a verdadeira consequência é que passamos a saber o que nos pode também acontecer.

Ainda assim, foi mais difícil deixar o Miguel... a mesma dinâmica de mudança impeliu-me para novos caminhos que introduziram uma distancia enorme entre nós e aos poucos fui forçado a ceder na relação. Durante largos meses ainda me mantive crente, celibatário e fiel. Empenhei-me e esforcei-me por conciliar na minha agora complicada agenda, pequenos regulares encontros efémeros a quando de uma viagem a casa. Contudo era apenas uma questão de tempo até que a distancia e a ausência levasse a melhor... Um dia, já em desespero de causa, acabei por procurar um outro no meio de uma cidade qualquer... do qual nem quis saber o nome. A experiência naturalmente correu mal, naquilo que se veio a revelar o inicio de uma sucessão de tantas outras más experiências... A total ausência de fidelidade raramente nos é compensatória. Ainda voltei às mãos do Miguel mais tarde por um punhado de vezes, mas a ruptura é agora efectiva. Simplesmente não vale a pena pensar que temos uma relação. Eu limitar-me-hei a visita-lo sempre que puder, num quase reencontro de velhos amantes que não fazem perguntas e limitam-se a retomar o calor da cama da noite anterior. Ele recebe-me sempre de sorriso largo e afectivo, e eu por momentos fecho os olhos e volto a descansar em mãos que sabem como o meu cabelo vai sair dali cortado naquele dia... mesmo que eu próprio o desconheça. É assim a confiança.

Ainda vi o João de passagem algumas vezes, mas evitava-o pois sentia que ele nunca iria compreender e perdoar aquela decisão, que ele certamente chamava de traição. Já o Miguel acolhe-me sempre perdulário, tentando corrigir e aprumar o corte que um qualquer carniceiro me ofereceu na ultima vez, nunca dizendo adeus. Os contornos da fidelidade são sempre obscuros. Compreender se quando decidimos mudar é em si uma infidelidade ou se a falta desta é apenas uma medida relativa do numero de vezes que mudamos... e quem decide que mudamos vezes de mais?... A fidelidade assume também diferentes formas, o que para uns é uma traição por simplesmente ter espreitado uma loja diferente, para outros é relativizado no essencial... a entrega pura que só conseguimos em algumas mãos. Parece-me sobretudo que a fidelidade depende essencialmente de começarmos por ser fiéis a nós.

Gatos&Cães

Ainda sobre os gatos e sobre os cães, explicam-me:

- Um cão ama-te incondicionalmente, é fiel... Venera-te! És tudo para ele! Um gato é mais independente.... Gosta de ti... Mas gosta mais dele!

Penso que eu não conseguiria colocar de melhor forma o porquê de eu ser um amante de felinos!...
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