domingo, 14 de fevereiro de 2010

Tigre

As madeiras brasileiras tinham um aroma muito intenso. Na altura desconhecia a sua origem noutro continente, mas aprendi que pau santo, ébano, pau rosa e outras que tais, eram sinónimos de longevidade e apreço. Desse cheiro nunca me vou esquecer. Como também me lembro sempre de como reflectiam a luz e contrastavam com o soalho de carvalho, esse sim que rangia corrompido pela idade e ressoava nas batidas das minhas sandálias de couro em corridas circulares pelos longos corredores da casa. No entanto, os móveis eram sobretudo para mim trampolins do meu peso ligeiro ao tentar alcançar as prateleiras poeirentas até então invictas de mãos intrusas. No meio do pó repousavam os brinquedos de balsa, feitos 30 anos antes, pelas hábeis mãos de outra criança. Eram os barcos dela que navegavam o atlântico e que com os seus canhões afundaram o Bismark uma centena de vezes. Eram os aviões que pela sua mão várias vezes eludiram nos ares a Luftwaffe e salvaram in extremis os seus companheiros de asas. Eram o prolongamento da imaginação de quem vivia na sombra do fim de uma guerra nunca vista, fonte de horror desumano, mas que iluminava e encantava a imaginação fértil de um jovem perdido na ruralidade minhota. Assim que a exaustão física atingia o seu cumulo, os brinquedos voltavam às prateleiras, e eu submergia nas historias fantasiosas que saiam das Reader's Digest directamente para as previsões do futuro. Naquelas revistas amarelecidas guardadas religiosamente nas gavetas empenadas (nem todas feitas da mesma madeira exterior...) ditava-se um futuro feito de Zeppelins porta-aviões, e soldados voadores, cidades perfeitas de automação e sociedades de abundância, paz e iluminismo.

Esse futuro nunca chegou a vir, com especial pena pela parte dos zeppelins porta-aviões. Mas veio um mundo em paz feita de tensões entre bons e maus, os do ocidente e os de leste, entre a democracia e as ditaduras totalitárias, entre os livres e os comunistas que ocasionalmente comeriam criancinhas como eu ao pequeno almoço. O oriente, era algo que ficava para lá das fronteiras. Um mundo distante que desde Nagazaki e o paralelo 38 tinha ficado parado, arrefecido na minha história bélica. Cresci assim num universo ocidente-centrico, pacifico, já sem vietnams e descolonizações, confortavelmente habitando um mundo de liberdades conquistadas no sangue do passado e depois garantidas pelo Tio Sam. À medida que os anos passaram e a consciência critica fortaleceu, o mundo acinzentou em degradês de muitas faces. Afinal os maus dizem-se bons agora, e os velhos bons esqueceram-se do que eram e por vezes foram, são, bem maus.

Hoje começa mais um ano chinês. É o ano do Tigre. Um bom motivo para se celebrar com uma carinhosa oferenda aos entes queridos. No momento em que recebo um presente penso no outro quinto da população mundial que está em festa. Interrogo sobre o sentido daqueles festejos. Se eles ainda se guiam pelo o seu calendário, ou se o novo ano já nada mais é do que uma data no calendário gregoriano. Um momento de folclore tradicional, como a Páscoa para os cristãos. Os muçulmanos, mais fracos em numero e cultura, cederam e foram já tomados. O seu arcaico e errante calendário foi já arrematado para a dimensão do folclore. Mas se utilizar o mesmo critério, do numero e da força, questiono-me se daqui a trinta anos a minha criança estará hoje a receber um presente na escola, e trouxer para casa um livro sobre o sucesso do modelo revolucionário chinês...

Não sei obviamente o que o futuro nos reserva. Dizem que os de Tigre são audazes, aventureiros e charmosos. Gostam de assumir riscos e agir antes de pensar nas consequências. Tudo portanto que é necessário para que este seja um bom ano! Eu pela minha parte... continuo a querer ver zepplins porta-qualquer-coisa a ocupar os céus.


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